Temporada 2021 e encerramento do blog
2021 foi uma bela temporada. Tive a satisfação de voltar a voar para valer depois de tantos anos. Na sequência do meu acidente em 2014 veio um longo hiato: mudei-me para a Argentina no começo de 2016, onde fiquei até meados de 2018, e casei-me. Nesses quase três anos, voei muito pouco. Ao voltar para o Brasil, o recorde do Centro-Oeste já havia caído nas mãos de Gabriel Seraphim (310,3 km em 2017), piloto talentoso formado pelo André Fleury, que repetiria o feito em 2019 (325,1 km) e em 2021 (325,2 km). Nesses anos, não fiz nada de muito significativo, exceto talvez o recorde local da rampa do Vale Paranã (300,6 km em 2021), juntamente com Lourival Filho e Fabio Stallivieri.
Em compensação, foram muitos os voos memoráveis, ainda que sem recordes. Finalmente reunimos um grupo de bons pilotos em Brasília, capaz de voar em pelotão e cooperando. Os cursos de XC realizados com Frank Brown (2020) e Samuel Nascimento (2021) ajudaram muito na compreensão dos benefícios de se voar em grupo. E também começamos a antecipar as decolagens para em torno de 10h00, permitindo assim uma janela de quase 8 horas. A janela de 9 horas, com decolagem às 9h00, parece perfeitamente factível em Brasília, o que permitirá esticar o recorde para 400 km, voando a uma média de pouco mais de 44 km/h. É só uma questão de escolher o dia certo, arriscar a saída cedo e voar em grupo. Em Montes Claros e outros locais de Minas, como Mateus Leme, acredito ser possível sair ainda mais cedo, por volta das 8h00, resultando numa janela de quase 10 horas.
Síndrome vasovagal ou enxaqueca ocular?
Nesse período, fui ao sertão apenas em 2018 e 2021, nas duas vezes por períodos muito curtos (uma semana em 2018 e três dias em 2021). A partir de 2019, comecei a experimentar sintomas em voo típicos da chamada síndrome vasovagal, que compromete o fluxo sanguíneo para o cérebro, ou, talvez, de enxaqueca ocular. Tive confirmado o diagnóstico de vasovagal no início de 2021, após uma longa bateria de exames para descartar outras hipóteses. Mas tenho dúvidas sobre a validade do diagnóstico, já que o exame é feito mediante ingestão de medicamento vasodilatador, que desencadeia os sintomas, os quais só passei a sentir nos segundos finais do teste de mais de 40 minutos. Depois, lendo sobre enxaqueca ocular, de causa não conclusiva, avaliei que os sintomas se encaixam melhor na descrição do que sinto esporadicamente: perda transitória de campo visual, aparecimento de pontos cintilantes, escurecimento da visão e sensibilidade à claridade, sempre de caráter transitório e regressão completa em cerca de meia hora, mas seguidos de forte dor de cabeça.
Seja qual for o diagnóstico, o problema está relacionado a uma falta de fluxo sanguíneo na cabeça, que gera considerável desconforto em voo. Quando falei ao cardiologista que não pretendia parar de voar, recomendou, perplexo, que eu buscasse voar em grupo, para contar com ajuda na hipótese de uma pré-síncope ou síncope (termo médico para a sensação de perda de sentidos).
Durante a maior parte da temporada, consegui controlar os sintomas usando meias de contenção, comendo amendoim salgado (para controlar a pressão) e contraindo abdômen, pernas e mãos. Mas a perspectiva de desmaiar em voo tornou o voo em grupo uma necessidade. Uma semana antes de partir para o sertão, tive novamente os sintomas, dessa vez em casa, o que quase me fez desistir da viagem.
A extinção do "foot launch" no sertão e os reboques
Desde 2018, quase não se voa mais no sertão de rampas. O voo rebocado permite decolar mais cedo e a partir de locais com rotas desimpedidas e mais eficientes, como Assu/RN, Caicó/RN e Tacima/PB (esta última com maior nível de dificuldade no começo do voo), que passaram a ser centros de excelência para a busca de recordes e primazia nas ligas internacionais de distância. Os pilotos que passam mais tempo nessas localidades logram posicionar-se em liderança quase inalcançável dessas ligas pelo restante da temporada. Essa busca por distâncias cada vez maiores e o fato de a Federação Aeronáutica Internacional não distinguir entre recordes de decolagem natural ("foot launch") e mediante uso de reboque ("tow launch") transformaram as principais rampas do sertão, como Patu/RN e Quixadá/CE, antes muito badaladas, em locais fantasmas durante a alta temporada. Muito já se falou da revolução do reboque. É mais seguro e eficiente, mas confesso que sinto saudades das decolagens de Patu e Quixadá e da saída para o voo em pelotão. Os operadores de reboque estão aperfeiçoando as decolagens simultâneas e buscando locais com morros próximos às pistas para que o grupo possa se juntar no começo da longa jornada de 11 horas no ar (como, por exemplo, Tacima e Cachoeirinha, ambas na Paraíba). Só tende a melhorar, mas reconheço meu saudosismo das rampas.
Este ano fui para Assu por uma semana, mas secretamente já planejava fazer apenas um voo antes do dia 20 de outubro, meu aniversário de casamento. Não queria fazer a desfeita com a Luana. No primeiro dia, o reboque teve uma falha e tive de soltar-me a apenas 200 metros. Ainda cometi o erro de pousar atrás da lagoa seca a partir da qual se operam os reboques. O carro demorou para chegar, e um dia muito bom estava perdido. No dia seguinte conseguimos um reboque simultâneo Guilherme Brasil e eu. Voamos até o km 160 juntos em perfeita sincronia. Mas infelizmente ele caiu na hora crítica do dia, por volta de 11h30, quando o sertão respira e a condição se torna traiçoeira. Segui o voo sozinho até mais ou menos o km 350, ansioso por não ser acometido pela pré-síncope e com o GPS sempre indicando que não fecharia os 400 km, quando encontrei Fabinho e um piloto de São Paulo, André. Ambos haviam sido rebocados de Assu em horário semelhante ao meu, mas é extremamente difícil juntar o grupo nessas circunstâncias. Durante todo o dia todo havíamos nos comunicado por rádio para tentar o agrupamento, sem êxito. Baixo e sem perspectivas, ainda consegui birutar duas térmicas salvadoras para o grupo. Por volta de 17h30, iniciamos o planeio final sem afundar por mais de 30 km, boiando no colchão de calor do sertão. Já começava a escurecer, e o André optou por pousar no asfalto. Fabinho e eu começamos a acelerar 100% para forçar afundamento. Pousamos um pouco mais adiante, às 18h, à noite, com 430 km, num vilarejo próximo à divisa entre Ceará e Piauí.
Por mais clichê que possa ser, a muitas vezes repisada frase "uma vez que tenha experimentado voar, andará pela terra com seus olhos voltados para o céu, pois lá esteve e para lá desejará voltar" traduz muito bem os relatos deste blog, que encerro com esta postagem. As experiências que esse esporte me proporcionou definiram minha vida e permanecerão para sempre na minha memória. Logo, as obrigações profissionais me afastarão uma vez mais da minha querida Brasília e do voo. Deixo o blog como recordação desses excelentes momentos e amizades do cross country em parapente.
Brasília, 31/10/2021