Saturday, November 17, 2012

Quixadá 2012



(Texto escrito para a revista espanhola "Parapente".)

Este foi meu sétimo ano em Quixadá. Da primeira vez em que estive lá em 2002 até hoje, houve algumas mudanças importantes, em particular a antecipação do horário de decolagem de cerca de 09h30 para as 6h30 (o que aumentou a janela de voo para onze horas) e o desenvolvimento de parapentes de duas linhas, com ganhos brutais em desempenho. O recorde local, que então era de 330 km, passou para 463 km e só não superou os 500 km porque o começo e o fim desta temporada foram antecipados sem que o tenhamos previsto corretamente.

Quixadá é, por uma ampla margem, o local no mundo que abriga a maior quantidade de voos de mais de 300 km. Há locais que permitem uma janela maior de voo e ventos ainda mais extremos e alinhados, mas em termos de consistência nenhum deles chega perto do Nordeste brasileiro. Há outra vantagem importante: apesar do resgate difícil e do terreno inclemente, a região é relativamente bem povoada e em boa parte das rotas voadas há povoados com gente extremamente solícita e amável, que se desdobra para ajudar os pilotos.

O fato de a janela de voo ter sido estendida para 11 horas supõe alguns desafios. O esforço mental para estar tanto tempo no ar lidando com situações difíceis e procurando não cometer erros é enorme. Há outro aspecto psicológico importante no voo em Quixadá: os dias não voados ou em que se pousa cedo tendem a gerar ansiedade nos pilotos. Quando não se passam muitas horas voando, são muitas as horas de "espera" por assim dizer. O outro desafio é físico. É preciso beber, comer e urinar em voo. Se o piloto não está em plena forma, a chance de sofrer uma desidratação ou um esgotamento é grande. Daí a necessidade de ter dias de descanso após voos longos.

O vento na decolagem é forte na maioria dos dias e em alguns dias além do razoável para decolar com segurança. Nem sempre esse vento se mantém na rota de voo. É comum experimentar vento fraco entre meio-dia e duas da tarde. Um grande patrimônio local de Quixadá é o coordenador de decolagens Paulo "Casca", que desenvolveu uma habilidade impressionante de observação dos ciclos do vento. É sob as ordens dele que os pilotos, dos menos aos mais experientes, puxam seus tirantes para decolar. Os meninos locais de Juatama, a localidade mais próxima à rampa do "Morro do Urucum", como é chamada, ajudam os pilotos a abrirem as velas e a mantê-las no chão durante as rajadas mais violentas.

Até este ano, historicamente, os melhores voos em Quixadá haviam sido realizados em novembro. Este ano acabei indo mais cedo, em 12 de outubro, porque não pude tirar férias em novembro. Foi uma feliz coincidência, já que aparentemente (escrevo este texto em 16/11, e tudo é possível em Quixadá...) o mês de outubro foi muito melhor, com nada menos que 12 voos acima de 400 km. Sem uma boa estação meteorológica em Quixadá e outra por volta do km 300, seguiremos num "jogo de adivinhar", já que as previsões dos vários sites disponíveis nem sempre são precisas para a região. Aliás, essa é outra característica de Quixadá: independentemente da previsão, as tentativas de recorde são feitas todos os dias, exceto nos de descanso, em que não há alternativa.

O resgate envolve rodar muitos quilômetros, inclusive em estradas de terra. Para se ter uma ideia da sua dimensão, os voos de mais de 400 km que fizemos este ano envolveram resgates de cerca de 1500 km. Em duas semanas, o carro que aluguei rodou 6000 km. No primeiro voo de 430 km, cheguei ao hotel às 5h30 da manhã (quase 24 horas após ter saído para voar) e logo me dei conta de que nos próximos voos longos teríamos que dormir em algum local no caminho e usar o dia seguinte para o regresso.

Cheguei a Quixadá alguns dias antes da equipe SOL. A viagem começou com um susto. Minhas linhas já tinham mais de cem horas e as do tirante B estavam encolhidas cerca de 6 cm, fato que só fui descobrir posteriormente quando troquei o set de linhas. Tive dois eventos de cascata nos primeiros 30 km de voo e pousei com as pernas tremendo e as mãos suadas. O voo seguinte (13/10) foi minha primeira oportunidade para chegar aos 400 km, mas pousei às 14h27 com 260 km voados. Embora fosse um dia de pouco vento, as mais de três horas desperdiçadas teriam sido suficientes para voar 140 km adicionais, já que o fim da tarde é o período do dia que costuma render a melhor média. Os próximos dias foram usados para descanso. Num deles estava sem resgate e nos outros a condição não era ideal para voos longos.

Uma nova tentativa solitária de voar 400 km (18/10) seria corretamente abortada no km 170 num dia em que o céu azulou. O dia 19/10 foi o primeiro em que coincidi com a equipe SOL no ar. Já havia voado com Marcelo Prieto (Cecéu) e Rafael Saladini em 2007. A maneira como cooperavam em voo, se alternando na tomada de riscos e em comunicação permanente, me impressionou muito. Naquele ano eu voava de DHV 2/3, e nossa parceria só durava as primeiras horas do voo. Este ano havia um total de seis pilotos de elite (Frank Brown, Marcelo Prieto, Donizete Lemos, Samuel Nascimento, André Fleury e Hernan Pitocco) na equipe voando juntos parapentes de 2 linhas, se comunicando e se auxiliando de forma permanente, debatendo as alternativas em voo, literalmente varrendo o sertão da maneira mais eficiente possível. O sistema que já era eficiente em 2007 passou a ser praticamente infalível e somente deixou de bater o recorde mundial de distância livre porque o final da temporada foi precoce.

Voar com a equipe SOL foi uma revitalização para mim. Durante o ano, praticamente só faço voos sem companhia em Brasília. Voei sozinho no sertão em 2010 e 2011, dois anos ruins em que a equipe optou por não tentar o recorde. É um exercício por vezes maçante, e o nível de estresse é muito mais alto quando se voa sem parceria por tantas horas.

Foi um privilégio ver o sistema SOL em marcha. Exceto nos momentos mais difíceis, é impressionante a descontração dos pilotos. Ouvem-se piadas no rádio, as alternativas são debatidas, as lideranças alternadas. Sem falar no coordenador de resgate, Dioclécio Rosendo, exímio navegador e motorista, que conhece a região como ninguém.

Meu primeiro voo de mais de 400 km foi justamente nesse dia (19/10). A equipe voou até Pedro II (288 km) passando por três pontos pré-definidos e estabelecendo o primeiro recorde mundial da Expedição SOL/Amarok no que terá sido um "exercício de aquecimento". Como ainda havia três horas de voo e aquela era a melhor chance que havia tido até então de romper a barreira dos 400 km, segui o voo sozinho e pousei às 17h30 em União (432 km), às margens do belo rio Paranaíba, a fronteira natural entre os Estados do Piauí e Maranhão.

Meu resgate nessa viagem foi um amigo de longa data de Brasília, que apelidei de "Índio Velho". Chegou rapidamente, e pegamos mais de dez horas de estrada para regressar a Quixadá. Após um voo e um resgate como esse, o corpo fica mole e um dia de descanso é insuficiente para recuperar as energias. Como o relógio biológico já está programado para acordar muito cedo, mesmo estando exausto é difícil dormir até tarde na tentativa de repor o sono.

Em 21/10, novamente decolamos cedo e enquanto esperávamos o momento certo de fazer a primeira tirada, a velocidade do vento aumentou muito. Num momento de falta de atenção, em que programava meu GPS, voei de ré sem perceber e quando me dei conta já não tinha como voltar para a decolagem. Joguei no caudal baixo e pousei com poucos quilômetros. O vento forte também atrapalhou a saída da equipe. Pitocco e Cecéu foram obrigados a jogar no "venturi" à esquerda da rampa, e a equipe só conseguiu se juntar novamente no km 20.

Achei que tinha perdido o grande dia porque escutava os comentários no rádio sobre velocidades de solo superiores a 100 km/h. Mas quando o vento é muito forte, as térmicas ficam mais quebradas, e é difícil se recuperar após ficar baixo. Foi o que aconteceu com a equipe pouco antes do km 100. Mais tarde, o céu acabou azulando.

22/10 seria o dia em que voaríamos todos cerca de 462 km. A equipe SOL fixou um ponto no km 423 como gol declarado, sobre o qual passariam altos pouco antes das 17h00. Nesse dia, voei com a equipe até mais ou menos o km 320, quando cheguei mais baixo a uma térmica turbulenta e acabei perdendo o grupo. A partir daí fiquei para trás umas duas térmicas, o que em Quixadá equivale a chegar próximo ao chão, quando o pelotão dianteiro já está fazendo base a 3000m sobre sua cabeça, com um vento caudal de 30km/h, na melhor hora do dia.

Pitocco também se atrasou e seguimos o voo juntos. Houve um momento em que eu tinha a certeza de que o grupo da frente faria 500 km, mas já era tarde e um piloto da equipe ficou mais baixo nos momentos finais do voo. Os demais decidiram, como haviam combinado, fazer o planeio final e pousar juntos.

Nesse momento, Pitocco e eu nos encontrávamos mais ao sul da rota que passava pela baliza do recorde mundial declarado, e eu não tinha contato visual com o primeiro pelotão, sobretudo porque havia muitas queimadas e a visibilidade era ruim. Como não tinha a intenção de bater qualquer recorde (aliás, não tenho licença FAI válida há três anos), segui pela rota ao sul da baliza, certo de que o pelotão dianteiro pelo menos encostaria nos 500. Pitocco fez a baliza e voltou para nossa linha, que rendia bem e ainda proporcionou uma última térmica. Pousaríamos no mesmo local, em Redenção, no Estado do Maranhão (462,4 km).

Não estava claro então que faríamos uma distância pouco maior do que o resto do grupo (sequer chegou a dois quilômetros a diferença). Embora eu estivesse em comunicação permanente com o Samuel, em que transmitíamos nossas respectivas distâncias da rampa um ao outro, elas eram muito semelhantes e tudo indicava que pousaríamos todos no asfalto que liga Caxias a Coelho Neto.

Quando cheguei ao asfalto havia uma estrada de terra imediatamente na minha proa que levava a um pequeno povoado. Essa era a única via para esticar o planeio final, pois ao redor da estrada só havia mata. A alternativa teria sido fazer uma espiral e pousar no asfalto. Decidi pousar no povoado, e o Pitocco tomou a mesma decisão.

"Índio Velho" foi novamente impecável no resgate e logo nos juntamos ao grupo. Dormimos em Teresina, no Piauí, para seguir viagem no dia seguinte. A volta foi tão longa que precisamos de um dia adicional para descansar. Só voltaríamos à rampa em 25/10, dia em que todos os pilotos pousaram cedo, com cerca de 30 km voados.

A essa altura, já estava cansado. A experiência de voar no sertão é incrível, mas também envolve ansiedade e tensão. Acordar muito cedo, tomar café da manhã às pressas, ir para a rampa e se equipar rapidamente para decolar antes de entrar vento forte, esperar sobre a rampa o melhor momento para sair, voar por 11 horas, regressar de carro por mais de 700 km, descansar, esperar... É uma rotina que consome o piloto, e, pelo menos para mim, duas semanas em Quixadá são o limite.

Haveria, entretanto, um último voo em 26/10. A equipe SOL voltou a fixar um ponto para o recorde mundial de distância declarada. Esse dia não foi o melhor, mas o mais emocionante. Ficamos mais de uma hora sobre a rampa. Estava muito nublado, e tudo indicava que seria um dia para treino e imagens. Mas as condições de voo melhoraram rapidamente, e o time resolveu tentar o recorde. Foi um dia turbulento, com pelo menos dois incidentes: uma cascata do Cecéu, logo cedo, em que esteve a ponto de usar o reserva, e uma fechada que sofri, cuja reabertura foi tão violenta que estourou a fita interna que tensiona o bordo de ataque. No final da tarde, já sem perspectivas de chegar ao gol declarado, encontramos uma térmica sobre uma queimada cujo pico atingiu 12,7 m/s. Foi possivelmente uma das térmicas mais turbulentas que peguei em toda minha vida. Todos nos concentrávamos para não cairmos em cascata um sobre o outro. Mas foi também a térmica que permitiu ao grupo chegar ao seu gol declarado (420 km) e assegurar a homologação do recorde. O pouso havia sido escolhido no Google Earth e quando o sobrevoamos nos demos conta de que havia muitos coqueiros altos. Minha aproximação para pouso foi um exercício de "slalom" interrompido por dois coqueiros que se chocaram, um de cada lado, com meu parapente e me fizeram despencar cerca de três metros, por sorte sem consequências graves.

Terminou assim minha aventura no sertão, com três voos de mais de 400 km, um pouso esdrúxulo e uma bela cervejada com a equipe SOL/Amarok. Costumo dizer que esses voos de mais de 10 horas que fazemos em Quixadá são uma metáfora de nossas próprias vidas. Nas horas em que permanecemos no ar, experimentamos todo tipo de sentimentos, bons e ruins. Prazer, angústia, deleite, ansiedade, alívio, medo, obstinação, esgotamento e tantos mais. Ao voltar à terra após um dia inteiro no ar, a sensação que se tem é de dever cumprido, o corpo fica mole e o cérebro recebe uma injeção mágica de endorfina, o hormônio do prazer.

Não sei se seguirei tendo a energia que se requer para voar no semi-árido brasileiro. Sempre falo isto e acabo voltando atrás no ano seguinte. Seja como for, as recordações desses sete anos no sertão permanecerão para sempre na minha memória. Às vezes deixamos de fazer as coisas que amamos pelos riscos que envolvem, motivados por nosso instinto de sobrevivência. Mas quando deixamos de fazê-las, também abrimos mão de viver. É um dilema, uma linha tênue, e a decisão é sempre muito difícil. Os sustos que tomei no primeiro voo em Quixadá este ano e em 2011, quando lancei dois reservas próximo a Monsenhor Tabosa, no que foi uma verdadeira luta pela minha vida, quase fizeram com que me afastasse do sertão. É justamente a superação envolvida em voar no semi-árido do Brasil que talvez tenha representado a experiência mais gratificante de todos esses anos.