Friday, July 30, 2010

Parando de competir e a alegria goiana



"Don´t let a joy turn into a mission" - Rodrigo Monteiro

É curioso como as circunstâncias conspiram para promover mudanças. Sempre tive uma relação de amor e ódio com as competições. Em setembro de 2009, quando fui informado de que voltaria ao Brasil a trabalho, a reação natural teria sido deixar as competições e mover adiante. Mas temos uma propensão natural a resistir às mudanças. Com isso, somente as prorrogamos.

Querer seguir competindo em 2010 era remar contra a maré, pois o novo trabalho é incompatível com a montagem de um calendário efetivo de competições internacionais. Some-se a isto os tempos de deslocamento e os custos de viajar a outro continente. Tentar estar bem rankeado nessas condições seria tirar leite de pedra e sacrificar meu tempo livre. Mas ainda que somente houvesse conseguido férias para fazer uma competição no ano, quis acreditar num milagre e viver em negação.

O regresso a Brasília depois de mais de 5 anos no exterior trouxe de volta as belas paisagens do Planalto Central e sobretudo os prazeres de voar livre, de quando ainda voava sem muitas ambições, exceto a de voar o que eu mesmo considerava satisfatório. A pré-temporada do Centro-Oeste, com vôos ainda inconstantes e a condição insistindo em azular, já vinha sendo o suficiente para encher o coração de alegria.


Piedrahita

A viagem ao Pré-Mundial em Piedrahita já estava paga, as férias autorizadas, mas à medida que se aproximava a data aumentava meu sentimento de inadequação.

Não quero cuspir no prato que comi, e a verdade é que as competições representaram uma fase emocionante na minha vida. Mas cada vez mais sentia o peso das esperas eternas - sanduíche; ônibus; briefing; janela; start; resgate (este sim o mais desgastante...); descarga de GPS; etc. O pior eram os muitos dias não voados e a expectativa de estar na tediosa função de aguardar para que o coletivo pudesse voar em condições permanentemente reguladas.

A primeira prova em Piedrahita requeria decolar com vento caudal. Não que não tenha decolado em condições adversas para voar livre. Tanto que corri feito louco para não beijar o asfalto de Peña Negra. Mas o que se seguiu a isto me incomodou...

Foi determindo que o start só teria início duas horas depois da janela, de modo a permitir que todos saíssem. Esperando a mais de 4000m, congelando, com a condição à frente absurdamente clássica e sem poder começar meu vôo, perguntei-me pela primeira vez se realmente desejava estar ali. Jamais havia pego um teto daqueles no sistema central madrilenho, porque nos três anos em que vivi na Espanha estive muito ocupado competindo em meu tempo livre.

O start clássico fez-me esquecer todo o desconforto da espera. A transição de 40km à primeira baliza foi "regalada", como se diz na Espanha. Por baixo da autovia de "cloudstreets", tudo subia, e o pelotão voava melhor do que nunca, numa média ridiculamente boa.

Ocorre que a partir da primeira baliza havia um limite de altitude de 3000m (em função do espaço aéreo de Madrid Barajas) que tinha de ser respeitado a menos que se quisesse zerar a prova. E aí começava o drama de fazer espirais em turbulência para baixar de 4000 a 3000m numa óbvia convergência em que tudo subia e nada descia. Quem era mais apto em acrobacia lograva baixar contra todas probabilidades e tinha a vantagem. Os culhões...

Mergulhando agressivamente para não romper a restrição e confundido com meu instrumento novo, perdi a baliza. Voltando contra-vento, arrasado, para cumprir o caminho determinado, acabei me posicionando na borda de uma chuvasca em que a vela adquiria estranhas configurações. Por sorte, anulou-se via rádio a prova, que não deveria ter havido porque a decolagem já supunha riscos suficientes.

Havíamos esperado muito pelo start, e o ponto da rota do qual já estaríamos longe, não fosse a espera, já estava saturado. Uma nova espera eterna pelo resgate gerou outra bateria de questionamentos sobre se realmente queria aquilo.

O segundo dia, que era um dia de sobrevivência, foi a gota d´água para culminar o processo de aceitação do fim precoce da minha carreira de competidor. Depois de cair cedo na primeira prova válida, recebia um telefonema e chegava à conclusão de que teria de voltar imediatamente ao Brasil por questões pessoais.


Voltando a Brasília

"É seu único lugar no mundo
Que é seu abrigo
A sua casa
Que traz a liberdade
Em clima de felicidade
Onde pode ficar nú!"

- Cidade Negra

Esperando ansiosamente pelo parapente nas esteiras dos vários aeroportos, pensando nos prejuízos gerados pela interrupção precoce de minha viagem e no desastre que seria ter meu equipamento perdido pela companhia aérea, resolvi equacionar minhas questões pendentes no Rio de Janeiro e deixar as competições para sempre.

Como disse antes, não gosto de cuspir no prato que comi, mas para mim as competições vinham já há algum tempo se convertendo num "pacote de turismo", daqueles em que você é obrigado a fazer um monte de coisas que não quer porque fazem parte do programa pré-determinado e porque têm de ser feitas simplesmente para que se possa dizer que foram feitas. "Been there, done that"...

Morando num playground do cross-country, com duas das melhores rampas do Brasil num raio de menos de 200km da porta da minha casa, compreendi que o que realmente amava era o vôo livre. Desde a criação deste humilde blog, sua descrição lê: "Blog dedicado à minha grande paixão: o vôo de distância livre em parapente". Na verdade, eu já tinha readquirido o gosto por voar livre no Centro-Oeste, ao meu ritmo, e pousar com o por do sol.


Vale do Paranã

Na segunda-feira, com a "sobra" de 7 dias de férias, depois do fatídico bate-volta à Espanha, cheguei ao Vale do Paranã com o único intuito de voar longe. Mas o vento estava muito forte e o céu completamente azul. Saí da rampa de baixo subindo reto e com esperanças escassas de fazer um bom vôo. A rota via Brasilinha e Fercal tinha alguns fiapos de nuvens e parecia mais confiável. Cruzei o gap e catei na rampa do Dicran jogando em seguida para o plateau e enroscando em tudo que encontrava. Apesar do dia azul a qualidade térmica era boa e avancei sentido Vale da Fercal, depois de ficar baixo sobre o asfalto.

No Vale da Fercal, beirando a Serra do Maranhão, sempre há dusts invisíveis e a turbulência é desagradável. A vontade de voar depois de uma semana de angústia era grande e lutava para manter o R10 na cabeça e não perder os miolos estreitos das térmicas. Com cerca de 80km voados, chegava à rodovia Padre Bernardo-Braslândia no chão e dando o dia como perdido. Derivando no zerinho em direção ao plateau de Braslândia, fui salvo por um urubu solitário que subia sobre um povoado. Daí a uma queimada em que finalmente pude ouvir o apito constante do variômetro, aliviado por ter sobrevivido o pior momento do vôo.

Jogando sentido Edilândia vi as primeiras nuvens do dia, que começavam a se formar alinhadas. Voei de través para chegar ao alinhamento e fui recompensado já no azul, antes de chegar às nuvens. À medida que subia, observava a rápida formação de um cloudstreet que seguia sentido sudoeste para Pirenópolis. Daí em diante comecei a voar reto por baixo das nuvens fazendo uso do acelerador. Chegando à cachoeira de Corumbá, fiquei baixo na sombra, sobre um ponto alto do terreno, mas fui salvo. Com cerca de 175km voados e deixando Pirenópolis à minha direita, resolvi fazer o planeio final sobre a Belém-Brasília já que meu resgate estava sem celular. Com isso, não consegui fechar os 200km em linha reta porque voei boa parte da última perna do planeio de través.

O vôo, novo recorde da rampa do Paranã, pode ser visualizado aqui http://www.xcbrasil.org/leonardo/flight/28386


Jaraguá

Tendo que deixar meu resgate em Brasília, decidi voar no Paranã na terça para não ter de madrugar e pegar estrada a Jaraguá. Novamente ventão! Saí optando pelo vôo beirando o paredão da esquerda, e tive uma bela recordação de como a rampa do Paranã é mais técnica do que a de Jaraguá. Não conseguia fazer base e lutei durante uma hora para poder jogar com segurança ao plateau, quando já me encontrava em posição confortável (mas atrasado) para tirar no caudal a Mato Seco.

Novamente voei no azul por pura fome caso contrário já haveria forçado pouso há muito tempo. Mas o vôo rendia modestamente e a qualidade térmica do Planalto Central, mesmo no azul, incentivava a seguir.

Chegando à Serra do Mucambo, beirei seu lado menos "profundo" tirando sentido Barro Alto. É sempre um prazer cruzar as rodovias quando se voa do Paranã porque é como uma volta à civilização depois de um tempo longe...

Deixando Barro Alto à minha esquerda e chegando baixo a uma serra ligeiramente plana, tive a ingrata incumbência de escolher entre o zerinho, que me levava perigosamente ao rotor e à mata, ou voar contra vento penetrando precariamente e desisitir do vôo.

Me atirei ao rotor, ralando a bunda nas árvores e espremendo um planeio apertado ao primeiro pasto. Ufff... Mas pousei cedo novamente... A 30km de Uruaçu e querendo mais.

A isto se seguiria um fatídico resgate, o clássico desencontro entre resgate e piloto. Resgatado 5 horas após pousar, tomei o rumo pelo asfalto sentido Jaraguá.

É sempre um sonho voar em Jaraguá, pela qualidade térmica e a falta de dificuldade no momento inicial do vôo, ao contrário do que costuma ocorrer na rampa de Brasília.

No primeiro dia em Jaraguá não havia resquício de nuvem, somente térmicas e vento. Voando sozinho, e por momentos de saco cheio, fechei 182 km, ainda insatisfeito com o grande azul e a escassez de nuvens.

Jaraguá permaneceria azul, e mesmo no dia em que voei em companhia do Samuca era extremamente difícil imprimir boas médias (caímos no km 165). No dia em que cancelaram a prova do XCerrado, saí com vento lateral e o parapente murcho. A condição além de ruim era turbulenta, mas resolvi permanecer em vôo para aproveitar os mais de 30km/h de vento. Acabei caindo às 15h, com 160 km e uma média de mais de 40km/h. Com mais duas horas de vôo, teria feito ao menos 240km. Uma pena.

Mesmo com a condição insistindo em azular toda a semana, voei 917 km em 5 dias, um total de 24h30 de vôo. O piloto que tiver a sorte de voar no Centro-Oeste num dia de vento forte e abundância de nuvens irá longe. Se no azul e com pouco vento estamos voando 200...

Minha crise de identidade pela despedida um tanto melancólica das competições durou uns poucos dias. A "alegria goiana" fez-me entender que minha grande paixão é o vôo de cross country livre. Voltei ao cerrado e às minhas origens no vôo livre. Do meu escritório, vejo o céu clássico de Brasília. Agora, mais do que nunca, o vôo atua como uma locomotiva na minha vida. Tomei a decisão certa.


Dando adeus às competições

XCeará - Quixadá, Brasil, 2003 - 4to. (1ro. serial)
Campeonato Nacional - Monterrey, México, 2004 - 2do. (1ro. serial)
Open Cerro Arco - Mendoza, Argentina, 2005 - 2do. (1ro. serial)
Open de Santiago - Santiago, Chile, 2006 - 2do. (1ro. serial)
Open de Jaraguá - Jaraguá, Brasil, 2006 - 1ro.
Liga Espanhola - Sierra Nevada, Espanha, 2007 - 3ro. (1ro. serial)
Liga Espanhola - Castejón de Sos, Espanha, 2007 - 1ro.
Liga Espanhola - Sierra Nevada, Espanha, 2008 - 4to.
Open FAI/Liga Espanhola - Castejón de Sos, Espanha, 2008 - 6to.
Pre-PWC Arcones - Arcones, Espanha, 2008 - 18vo.
Copa do Mundo - Sopot, Bulgária, 2008 - 36to.
Monarca Open - Valle de Bravo, México, 2009 - 11ro.
Copa do Mundo - Governador Valadares, Brasil, 2009 - 37mo.
Troféu Montegrappa - Pove del Grappa, Itália, 2009 -25to.
Open FAI/Liga Espanhola - Pedro Bernardo, Espanha, 2009 - 4to.
British Open - Piedrahita, Espanha, 2009 - 1ro.
Liga Espanhola - Arangoitti, Espanha, 2009 - 6to.
Open FAI/Liga Espanhola - Montalegre, Portugal, 2009 - 1ro.
Liga Espanhola - Canalda, Espanha, 2009 - 5to.